quinta-feira, 21 de março de 2013

Carretel

Imagem: Velha Fiando por Ronaldo de Campos Fernandes

Saudade,
velha sorumbática
corcunda
enrugada
a fiar na velha roca
Dedos ossudos ainda destros
porém lentos
carcomidos do tempo
da janela na alta torre fita o relógio
em constante oscilação
e sobressalta-se a cada blem

O coração já não acompanha o relógio
vai a seu próprio passo
em descompasso
A roca, o relógio, suas memórias
giram com a terra num universo
centrífugo

Quem fita da luz não a vê
está misturada na soturna escuridão
nos tons terra amarelecidos
na penumbra da cor de ontem

O véu da catarata não oculta-lhe a luz
Ela vê da janela as cores dos dias extintos

Saudade,
desde o ventre saudade do antes,
um constante fitar do ontem
memórias marcadas no batímetro
de um tempo permanente

A velha vislumbra lembranças,
onde o tempo é sempre presente
fita de dentro da escuridão
um ontem há muito ausente
A mãe ralha porque ralou o joelho
A fita vermelha
O gatinho Félix enterrado no quintal
Ruboriza-lhe a lembrança do beijo
Extasia ainda a imagem de amor

A linha foge de sua mão
emaranhando o fio às possibilidades
do que poderia ter sido
aquele fio de meada

A velha puxa os nacos de algodão
girando a velha roca
a roda roda para frente
continuamente
tece um carretel
para a fazenda do vestidinho da menina
uma menina que ainda gira no ventre
dormente

O ranger insidioso da roca
acompanha o buraco negro
de dentro de seu peito
engolindo para a escuridão permanente
o brilho nebular
das saudades de uma estrela anã








segunda-feira, 11 de março de 2013

Transcendência



Fotografia por Dayane Elisa

      Momentos

      Marejam os olhos
      Desatam os nós
      Tremulam lábios côncavos,
      Convexos

      Farfalham cílios
      Qual espirotrombas
      Besuntadas
      No mel do divino





Momento
Em que infla-se o peito
De todo ar que se pode inflar
Relaxam-se os ombros

Réstias de luz
Lampejos de sabedoria

Ah epifanias,
Extasiados olhos
explodindo em maresias
escorrem pela areia
De uma face serena

Contempla
Da janela além da fazenda
As sinestesias
Da vida que dança
Nas cores perfumadas
De uma tarde doce
Atravessando a renda de tua venda

sexta-feira, 8 de março de 2013

A alquimista




 
Ah mulher!
Por que mordeste?
Te deixaste enganar em seu próprio conto
ludibriada pela fálica serpente

Mulher,
tu te condenaste a sorver em teus rubros lábios
o veneno que destilas em mel,
e alimenta o ventre protuberante

As tuas mamas jazem plenas de promessas

Tu és invólucro
Casca
Retículo endoplasmático
Raiz da árvore esplendorosa
que se estende majestosamente apontando ao infinito
enquanto te enterra ao solo sombrio
rumo ao cerne flamejante da terra

Mulher, que olha para o teu castigo
naquele berço de criação
com a graça dos afetos que te rompem
em chuvas de sal

Tu salgas a terra
das loucuras da insipiencia

As tuas emoções
tão flores
poemas da divindade
refletem nas pérolas dos teus dentes

Mulher que morde novamente
a fruta suculenta sob o olhar encantado da serpente
para que possas viver outra vez o enlaçe da meiose

segunda-feira, 4 de março de 2013

Cambuquira


Acabou o gás, um fogão improvisado no fundo do quintal cozinha o feijão carioquinha. A vizinha espia do muro de placas ralado, cheio de barro vermelho e sai rindo alto. O tijolo vermelho estala sob a panela de pressão untada de sabão por fora para proteger a panela de encarvoar-se permanentemente.
A mamona estala despejando sementes sobre a roupa de molho no sabão de soda dentro do tanque. A outra boca cheia de água colhida da chuva.
- O fia cata uma abobrinha lá no pasto.
Uma aboboreira nasceu a esmo a espera do sacrifício de seu fruto.
- O mãe acho que robaro, num tem nenhumazinha.
A mãe engole o nó da garganta. Deixa a bacia rachada de pregadores no canto do tanque, um vento brincalhão derruba tudo. O sol escalda.
- Fia cata os brotim, vamos ter cambuquira.
A mãe chacoalha a camiseta de uniforme, precisa estar seca em uma hora, ela torce e chacoalha repetitivamente. O cheiro de feijão tostado rescende, a mãe corre socorrer pendurando a camiseta no varal de arame farpado.
A tábua de carne já espera com meia cebola, dois dentes de alho, a mãe refoga no óleo de soja e joga o feijão borbulhante dentro. A vizinha linguaruda grita que o cheiro “tá de matar”.
A mãe pede para lavar os brotinhos e colocar na tijelinha com um cadinho de vinagre ralhando para economizar, uma colher basta!
O banho é de canequinha, a água aquecida no fogão improvisado do quintal.
Ela refoga o arroz quirera e a cambuquira ao mesmo tempo. A vizinha chega comentando que acha que de hoje não passa, há de chover. Que a vizinha da esquina “aquela sirigaita” ta saindo com o vizinho da frente, que “a fia ta bem ali para não deixar ela mentir sozinha”.
O pai chega de bicicleta Monarch verde, a verduca, chega roxo do sol. Tem cimento até nos cílios, reclama do atraso no almoço e xinga a luz cortada. A mãe corre no quintal e estica o uniforme para melhorar a aparencia.
A vizinha achega-se à mesa, “o vizinha mas eu vou ter que experimentar um cadim, o trem cheiroso”! - diz, aconchegando os dois filhos com cara de gulosos. A mãe diz que ela é muito bem vinda, corre no fundo do quintal, colhe um mamão verde que rala em segundos, refogando e já servindo aquela mesa de delícias. As crianças da vizinha gulosamente se refestelam e ela envergonhada reclama que não comem nada em casa, que deixam tudo no prato.
A comida da mãe satisfaz os desesperos, as chacotas, nos enche os estômagos e os olhos de esperança. A mãe está em perfeita sintonia com a terra. Saímos para a escola, o pai para o trabalho cheios do conforto de hoje. Que saudade da cambuquira da mãe.