quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Estilhaços


Um laço
gira o compasso
como um carrasco
devasso
O que faço?
Corto ou amasso?
Me arrasto
feito aço
fingindo ver pasto
nos algures deste paço
de boninas escasso
Passos
pedaços inefastos
bagaços
sulcos, rastos
Ouro gasto
me afasto
do teu abraço
Picasso

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

A rendilheira

Mãos destras atam o pique ao rebolo
agilmente alimentando os bilros
com linhas de nuvens de algodão
A rendilheira espeta o pique
com agulhas de laranjeiras

Cuidadosa ata o primeiro nó
cantando, repetindo versos
que tratam do mesmo enigma
do código de nós

Esquece a barriga vazia,
a pobreza triste do pé no chão
canta a beleza azul de seu rebolo
e desenha com com o branco
a figura de sonhos feita de algodão

Subserviente obedece às ordens das agulhas
retirando-as cada uma a seu tempo,
libertando o rebolo da ponta punjente

A rendilheira distraída
ignora a face sulcada de linhas de ontem
ou as próprias mãos calejadas,
absorta em transformar a linha contínua
na história que conta em renda

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Acorda Borboleta


A borboleta acorda vagarosamente de seu longo sono, confinada no escuro casulo. Tenta mover-se com seu cérebro de lagarta, não sabe ainda que as amarras que a atam são suas recentes asas que como camisa de força lhe confinam dentro da seda. A borboleta se rebela, se estica, rompendo gradativamente o berço de sua transformação. Emerge da crisálida molhada, com as asas murchas, as anteninhas tortas. Fita confusa, ainda acostumando-se à luz os pezinhos que antes eram apenas curtos cotos, agora longas pernas como de gazelas. Boceja faceira esticando a probóscida comprida e se assusta com o novo dispositivo; em deleite sente o cheiro que vem do néctar. Precisou comer muita folha verde, amarga, para sentir o cheiro deste mel. A borboleta transcendeu a fotossíntese, partindo as cores ocultas da luz no arco-íris das escamas de suas asas. Treme-las, sacude-lhes os tubos que se enchem de fluido vital, estica as rugas e se abre esplendorosa. A borboleta nunca saberá a glória de sua beleza, mas ao primeiro impulso aprende as delícias de voar. Deslumbra-se com as flores, sorve-lhes o doce mel, alheia que possa ser tão fascinante como tais. Borboletas não se olham no espelho.


terça-feira, 18 de setembro de 2012

Gorjeio


O pássaro teimoso canta da gaiola feia
Asas cortadas para não voar
Alpiste
grades ante o olhar,
as minhocas risonhas assistem do chão
gatos gulosos esperam a hora da ceia
e ele tem saudades de enlevar-se ao ar...

O pássaro cerra os olhinhos
canta o ninho,
a árvore, o voo
o ar, o horizonte
inflando o peito
transcende sua alma de passarinho

O pedreiro para,
a diarista para
para o vento
Até o bebê cessa seu chôro
Ante a mãe que também para a ouvir o côro

A melodia viaja nas asas do ar
e por um instante até os desemplumados
voam com tais notas a soar

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Apuro


Uma noite agoureira
A lua espreitando das negras nuvens passageiras
A coruja pia um pio soturno
Lobos uivam além em resposta aos uivos dos fios
Rangem dobradiças enferrujadas
das tábuas de portas abandonadas, fechaduras quebradas
Covas abertas no chão guloso
gritos abafados
olhos maquiavélicos espiam do milharal em flor
cobras sibilam das sombras rasteiras
é preciso fazer muito silencio,
para não acordar as criaturas
Morcegos em rasantes passam rentes ao pescoço,
ávidos pelo tesouro draculano
Em agonia o ente se retorce
ante as forcas penduradas nos galhos
num sobressalto o pé quebra um graveto
estrondando com um créck na noite que subitamente silencia
O vento sopra a lamparina que se apaga
shhhhhh
da fria noite uma jorrada quente desce pernas abaixo
Lá ao longe espia o WC maldito com sua boca sarcástica aberta
“Ah ha ha ha ha!
Mais um”, parece dizer.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Metamorfose Reversa



Uma borboletinha vivaldina
passou pela janela de Alina

Asinha pintadinha amarela
pequenos círculos azuis

Pousou na flor rasteira, abrindo,
fechando as asas, esticou a língua
e devorou o nectar das flores cálidas

Uma a uma as beijava, pulando para o ar
e pousando em outra pétala de mel

Alina puxou a cortina de voal
abriu o vidro e pulou para o quintal

Disse “olá borboletinha”, e suave
tocou na pontinha de sua asinha

A borboletinha riu de cócegas
e mostrou a língua para Alina,
“ah menina”- desde lagarta cócegas lhe fazia

A mãe espiou da janela de cima
“Que faz menina?”

Alheia Alina confabulava
seus sonhos de bailarina
à borboletinha amarela
de fina pálida purpurina
que pousara em seu dedinho

“Suba já Alina, o sol se põe além”
Alina não ouvia senão “ém”
Que soava como eco do sino de Belém

A primeira estrela despontava
a borboletinha com três piruetas
beijou-lhe boa noite e foi dormir
sob a seda de seu casulo

Sobre uma folha tenra
Alina viu ovinhos,  
lagartinhas a nascerem
devorando com pressa
a folha do próprio berço

“Viva! Novas borboletas”
Alina exclamou feliz…

Crepúsculo já se fazia
Alina voltou a sua janela
e saltou para dentro da casa

Uma casa casulo, foi jantar
e mais tarde enrolada em cobertas
dormia como uma lagarta
em metamorfose reversa






Para Alina, uma menina-borboleta