quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Vou-me embora



- Moço, uma passagem por favor.
Para onde? Para onde vou?
Ele não me ouve, o telefone toca.
Alô? Sim o 395 chegou, não, não senhora, já chegou.
O chão rescende a mijo curtido, sortido, encrustado nas frestas sextavadas do pavimento rachado. Um cheiro misturado ao pinho do desinfetante amarelo.
Olhos de ressaca espiam taciturnos das janelas na penumbra.
Não, não olhos de Capitu, de ressaca mesmo, olheiras fundas, faces babadas.
Malas prontas. Vazias. Pés descalços. Cabelos cortados.
- Uma passagem por favor.
A mãe chora inconsolável à porta do 416. A filha acena de dentro com a mão do bebê sonolento, sobe as escadas de costas, o motorista suspira condescendentemente.
Penso na carta. Perfumada com um ramo de alfazema imaginário, dobrada minuciosa e geometricamente em ousado origami. Uma vida para dizer com palavras tudo o que estava aqui, engasgado.
O motor arranca fedendo a diesel. A mãe se arrasta ao destino certo como se trouxesse o ônibus às costas.
- Vai pra onde senhora?
E agora? O pensamento irrompe como que em eco.
Não quero ir para onde todos estão indo com essas caras de querer ficar.  A lista indiferente apontando destinos concretos, definidos,  espetados como que eternos no mesmo lugar.
Já é tarde, ainda bem, o vendedor indiferente continua com os olhos grudados em algo debaixo do guichê. Este já chegou – penso.
Pra onde?
Coloco a carteira no balcão engordurado. A mala vazia faz tremer os ligamentos nos ombros exaustos.
- Onde senhora?
- Vou-me embora – sorrio, um novo lampejo acende no olhar. Deito a mala no chão. A identidade, no balcão. O vendedor continua insidiosamente gritando “a carteira dona”. A voz vai sumindo, e com ela a estação, as roupas, as mágoas. Só a antecipação impulsiona as moléculas: para frente, para frente, infinito adentro mergulho.
Na escrivaninha escura do quarto, a folha vazia em forma de passarinho súbito voa, janela afora.