quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Auto procurada



Procuro-me
desesperadamente
Desapareci lentamente
caco a caco
despedaçadamente

Estava a trilhar
apressada, atrasada,
a beira do abismo da falha
Perfeccionissimamente
passo a passo
cada pedra no caminho
um novo caco
esculachos
a cada descompasso

Ah barqueiro cruel
afanas pedaços do que fui
destilando em óbolo
as favas do meu mel

Do que sou, ainda em mim
restou aqui este coração
desfibrilado
acelerado
despetalado das róseas esperanças
pouco a pouco
Mais ainda tão cheio
do sangue da poesia

Se me vires por ai
nem que seja um mínimo estilhaço
lance um pão
sobre o oceano das minhas lágrimas

Por qualquer informação
que culmine no reencontro
recompensa-se generosamente
com uma pequena epifania

quinta-feira, 17 de março de 2016

Vero amor: de primavera





Ave terra, amada terra
Amor que desabrochou em primavera
Criaturas pipilantes, ecos distantes
Roncos de apressados aviões
O céu azul, mesmo céu
Opalescendo em suas estações quadráticas
Estabelecendo portos
À grande viagem, enigmática
A grama se cobre em miosótis
Pequeninas dádivas azuis
Engordam as mamangavas
Destilando em mel as doçuras anis
Ah se o amor voltasse assim
A transbordar no peito
A fecundar a mente de tantas gentes
Se apenas pudéssemos cumprir o caminho
Como o fazem os passarinhos
Ah primavera querida
Fecunda flor chamada amor
Nascendo em nuances, fragrâncias e cores
Ah se apenas a glória desta primavera
Enlevasse a alma, levasse guerras
Voltariamos a lavar no rio
A beber da fonte
Quem sabe então o que diria
O crepúsculo prometido
ao distante horizonte

quinta-feira, 10 de março de 2016

Ária às araras azuis





Ora, direis, araras?
Araras azuis não coram
Decoram o céu,
Azuis,
Choram cântaros
Araras cantando em coro
caminhos às amoras
ora, ora, araras
amores
amoras
Onde moras?
Em que cores resplendoras
Desabrocham tuas áureas auroras?
Onde agora?
Ara!...
Choram as araras
Ante secas cachoeiras de outrora
Florestas desfloradas
Céu descorado
O que eras arara?
Que encantos afora?
És desta era outras horas
Cara arara
Adora a flora
Que te adorna ainda
A arbórea que devora
E que te ampara
Arara no céu cobalto paira
Faixa mais azul
Arauto que ora:
árias em flauta
mensagens sem pauta
eras ébrias
Sombras efêmeras
Mármores de geléia
Inscritos de marengas memórias
Metáforas de glórias
Se ora ou outrora
Sempre me palpita,
Sara
Flor azul em secas varas
Voam senhoras...
Às namoradoras araras
juro eterno amor
Seus bicos em côro respondem: amora


terça-feira, 8 de março de 2016

Em ser destemida… - Feliz Dia Internacional da Mulher






Domingo de manhã
Acordei apressada
Vesti meu vestido Avon
“Estômago para dentro,
Ombros para trás
Vesti meia arrastão fumê
E um delicado par de saltos púrpura
Vesti a criança para a igreja
Arranjei nossos cabelos
Assei pão de queijo
Fiz ontem, até tarde,
Depois de haver filtrado
O vinho que estou destilando
Será preciso mais trinta dias de fermentação
As batatas borbulhavam
Ao mesmo tempo em que eu ensinava a pequena
A ter cuidado na cozinha
O jantar foi nhoque de batatas
Comida gourmet que não podemos nos dar ao luxo
De comer no restaurante
Estando a economia tão ruim
Não consegui disfarçar as olheiras
Preciso terminar os convites de aniversário da filha
Nem que seja de madrugada
Mas voltemos ao descender dos degraus
E lá vinham pela rua duas adolescentes muito destemidas
Clichês básicos:
Piercings
Tattoos
Crânios obscuros
Cabelos espetados com cara de sujos
Jeans rasgados
Sapatos nojentos
Muito originais!
Gargalhavam descontroladamente
Enquanto passavam
Meu bom dia:
- Tire esta meia arrastão ecaaa
HAHAHAHAHAHA
Três passos abaixo
Me dou conta que era comigo
Chego no carro
Coloco a criança na cadeirinha
Calma e ainda incrédula
Me assento
Desejei ter habilidades telepáticas
Para adentrar aquelas mentes tolas
Apenas para dizer-lhes
Sobre ser destemida
Destemida foi ser adolescente
Sem roupas adequadas
Nem mesmo para uma entrevista de emprego
Destemida for receber aquele não
“porque seu estilo não combina com minha loja”
Pois as roupas que trajava eram da minha mãe
Pés ensanguentados
De sapatos pequenos demais
Para caber meus sonhos
Destemida foi não ter dinheiro para o almoço
Quando se tem apenas dezoito
Destemida é teimar em entrar na faculdade
Contra todas as vontades
A noite, após o trabalho
Sem banho ou comida
E ter sempre alguem
Com um maravilhoso senso de humor
Gargalhando
Do cheiro da tangerina ainda verde que levara do quintal do avô
Do círculo de lama embaixo da carteira carregada pelos sapatos
Suas tatoos nunca hão de se comparar
Ao que a natureza ainda há de desenhar em ti
Você está pronta?
Na esquina da vida
Cabelos bracos surgirão
Rugas no teu rosto
Você pode ser magra demais
Gorda demais
Pobre demais
Ou muito burra para conseguir o emprego que gostaria de ter
Que pena não poder lhe dizer neste segundo
Quando você está quase na esquina
E ainda assim olha para trás
Esperando que eu reaja
Destemida querida é saber
Que não posso lhe consertar
Apenas você poderia fazê-lo
E oro que o faça
Espero que quando a natureza
Esculpir teu corpo
Você possa olhar seu rosto enrugado
E se encarar orgulhosa
Da mulher sábia que se tornou
Não estou fazendo apologia
Contra teu estilo
Suas tatoos, piercings
Ou quaisquer parafernália “destemida”
Tudo bem querer ser legal
Apenas não misture as coisas
E faça de si uma idiota
Vá para casa
Abrace teus livros
Seus melhores amigos, lhe asseguro
Que destemida heim?
Deixar os amigos em um dia lindo
Para ficar presa com um livro
Aprender algo, se for capaz
Sua juventude mente
Que você tem todo o tempo do mundo
E isto há de acabar com um tremendo choque
Quando o espelho te olhar de volta
E te dizer
Chegou a hora
Quando você tiver olheiras
Vasinhos
Dores
E mais assustador que o crânio em sua camiseta
É sentir que há um dentro de tua cabeça
A imagem não parece mais tão destemida
Não é mesmo?
Gostaria que pudesse salvar esta tua destemidez
Para usar em força
Quando deixar teu bebê com estranhos
E perder aquele trem
Destemida é voltar ao trabalho
E encontrar teus colegas invejosos
Do absurdo de tempo que você gastou
Em licença maternidade
Destemida é amamentar seu filho
Até um ano de idade
Tirar leite no banheiro
Enquanto come
Com pessoas contando seu tempo à porta
E te dando bronca Indagando
“qual é o seu comprometimento com a instituição?”
Destemida é ouvir papo de homem
Sobre vaginas largas após a mulher ter filho
Destemida é começar a ficar paranoica
De que a estupidez que falam possa ser verdade
Você passou pelo processo de divinização
Carregou em si uma alma
E a maioria dos homens se preocupa
Com o tamanho do buraco
E que vão perder o colinho, coitadinhos
Sei o que você deve estar desejando
Que eu não termine isto
“não acredito que ela tocou nesse assunto”
Desculpe dizer,
Mas isto é o ser destemida
Que tento lhe definir
Você precisa ser forte
Por obséquio, ouça o que digo
Você pensa que ser destemida é usar drogas?
Destemida é dizer não
E ser a quadrada burra
Com quem ninguém quer falar oi
Destemida é manter sua calcinha
Quando seu corpo também está em flamas
Quando seu desejo grita sim
E sua mente diz: insana
Não se misture
Você é pura
Alguém que poderia fazer coisas grandiosas nesta vida
Não se misture com alguém
Cujo intento é incerto
Seja sábia
Homens são grandes amantes, garanhões
Mulher, você sabe...
Se concentre na grande figura
Não se distraia com minhas meias arrastão
Sou tão frágil
Quanto tua sabedoria alcançar
Meus saltos querida
Parte da armadura
Há uma guerra lá fora
Que você tenha em sua mochila
Pelo menos um batom
Com uma mensagem vermelha
Não para seus lábios
Uma mensagem destemida
Como a substância das tuas veias
Você é destemida?