Janeiro chora lá fora. Escorre das janelas
embaçadas as gotas fartas da seiva de vida. Uma chuvinha cálida, sem trovões,
uma noite silenciosa, sem preocupações pela manhã. Roncam veículos
ocasionalmente, e o friozinho convida ao enlace das cobertas.
Lembranças de uma janela de metal, de um
metal barulhento que gritava de alegria ante os pingos da chuva. A janela da
casa na Cohab. A irmãzinha deitando-se correndo, pois chuva lhe era sinônimo de
soneca. A sopa da mãe cheirando gostoso, legumes fresquinhos ebuliam em
infusão. Líamos o gibi gasto novamente. A irmã mais velha reclamando da
luz.
Era dia de abrir a mala antiga que ficava
debaixo da cama. Nela a enciclopédia com todos seus mistérios, e a coleção de
Língua Portuguesa do Jânio Quadros. Livros tão queridos, folheava saltando
páginas aos excertos de poesias. Livros manchados de barro. Barro da
enchente.
A mãe trazia a sopa em tigelinhas,
colheres avulsas. O fogão, geladeira e armário azuis da cozinha refletiam a lúgubre
luz no telhado de telhas de cerâmica, sem forro. Observávamos as
aranhas pernudas tecerem, as lagartixas se fartarem.
- Mãe, conta a estória da enchente!
E a mãe contava, da chuva, que era Réveillon,
que esperava nosso irmãozinho que já se fora tão cedo, que a água atingira os
umbrais da porta. A mãe contava detalhes, minúcias, da chuva que caía em São
Paulo por dias a fio. Nunca minha mãe maldisse a chuva. Nos mostrava a alegria
dos pássaros quando ela vem. Assistíamos da janela o descortinar-se da líquida
transformação. O abacateiro no fundo do quintal balouçando suas folhas
brilhantes e derrubando frutos de alegria. A mangueira encharcada, a lama
escorrendo no quintal. A terra se fartando e dando graças ao milagre do
céu.
Mas me ensinaram que minha mãe não sabia
de nada, que precisávamos nos encher como baldes das idéias prontas em livros
tantos. Hoje quando ligo a televisão, e perco tempo precioso ao invés de estar
observando a chuva, me revolto ao ouvir pessoas finas, do mais alto nível de
educação dizerem que o estado lá fora é miserável porque a chuva cai. Gostaria
que eles houvessem conhecido a sabedoria de minha mãe, nunca diriam tamanha
blasfêmia.
A chuva continua caindo mansa lá fora,
minha mãe tão longe. Obrigada mãe por me admoestar a inspirar dessa chuvinha que cai como presente de aniversário.
Meu coração estará sempre pleno do morno calor das tuas sopas de amor, agora com
licença que a casa ressonando me convida a visitar os sonhos.
3 comentários:
Me levou as lagrimas,maravilhoso.Day
Muito obrigada Day!
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