terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Água sagrada


Janeiro chora lá fora. Escorre das janelas embaçadas as gotas fartas da seiva de vida. Uma chuvinha cálida, sem trovões, uma noite silenciosa, sem preocupações pela manhã. Roncam veículos ocasionalmente, e o friozinho convida ao enlace das cobertas. 
Lembranças de uma janela de metal, de um metal barulhento que gritava de alegria ante os pingos da chuva. A janela da casa na Cohab. A irmãzinha deitando-se correndo, pois chuva lhe era sinônimo de soneca. A sopa da mãe cheirando gostoso, legumes fresquinhos ebuliam em infusão. Líamos o gibi gasto novamente. A irmã mais velha reclamando da luz. 
Era dia de abrir a mala antiga que ficava debaixo da cama. Nela a enciclopédia com todos seus mistérios, e a coleção de Língua Portuguesa do Jânio Quadros. Livros tão queridos, folheava saltando páginas aos excertos de poesias. Livros manchados de barro. Barro da enchente. 
A mãe trazia a sopa em tigelinhas, colheres avulsas. O fogão, geladeira e armário azuis da cozinha refletiam a lúgubre luz no telhado de telhas de cerâmica, sem forro. Observávamos as aranhas pernudas tecerem, as lagartixas se fartarem. 
 - Mãe, conta a estória da enchente!
E a mãe contava, da chuva, que era Réveillon, que esperava nosso irmãozinho que já se fora tão cedo, que a água atingira os umbrais da porta. A mãe contava detalhes, minúcias, da chuva que caía em São Paulo por dias a fio. Nunca minha mãe maldisse a chuva. Nos mostrava a alegria dos pássaros quando ela vem. Assistíamos da janela o descortinar-se da líquida transformação. O abacateiro no fundo do quintal balouçando suas folhas brilhantes e derrubando frutos de alegria. A mangueira encharcada, a lama escorrendo no quintal. A terra se fartando e dando graças ao milagre do céu. 
Mas me ensinaram que minha mãe não sabia de nada, que precisávamos nos encher como baldes das idéias prontas em livros tantos. Hoje quando ligo a televisão, e perco tempo precioso ao invés de estar observando a chuva, me revolto ao ouvir pessoas finas, do mais alto nível de educação dizerem que o estado lá fora é miserável porque a chuva cai. Gostaria que eles houvessem conhecido a sabedoria de minha mãe, nunca diriam tamanha blasfêmia.
A chuva continua caindo mansa lá fora, minha mãe tão longe. Obrigada mãe por me admoestar a inspirar dessa chuvinha que cai como presente de aniversário. Meu coração estará sempre pleno do morno calor das tuas sopas de amor, agora com licença que a casa ressonando me convida a visitar os sonhos. 



3 comentários:

Anônimo disse...

Me levou as lagrimas,maravilhoso.Day

Caleidoscópio disse...

Muito obrigada Day!

Caleidoscópio disse...

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