Uma
primeira lágrima tímida iluminava os olhos da pequena Olivia, o
queixo trêmulo, as mãozinhas apostas como que em oração
instintiva.
-
Morreu? Caranguejos não morrem mamãe.
-
Morrem sim filha, é a ordem natural das coisas.
-
Pára de dizer que ele está morto, animais não morrem, ela está
dormindo.
- De
certa forma querida, é como se dormisse mas de um sono que não há
de acordar para esta vida jamais. A vida é assim mesmo.
-
Gatos não morrem – diz ela concomitantemente fitando Gaston O. Gato, que por sua vez repousa indiferente no ninho de papéis que ele
mesmo ajuntou sobre a saída da calefação. Gaston abre ligeiramente um
olho, como que interrompido pelo olhar dela, depois escancara a boca bocejando imenso.
-
Todos seres vivos morrem. - digo.
Ela
rompe em soluços, gritando alto que quer morrer também, que não é
justo, que não quer mais ser minha amiga – ela sempre rompe
relações quando está frustrada e não sabe exatamente o que quer
dizer.
Surpresa
com a reação dramática continuo meus afazeres, afinal já
programada: a vida continua.
Os
gritos não param, ela levanta os bracinhos e teatralmente se lança
ao piso com as faces avermelhadas completamente banhadas das lágrimas
sentidas.
-
Amor, não chore, o Hermie está tão feliz, ele foi para o céu,
encontrou a mamãe dele, o papai, alguns dos irmãozinhos. Ele já
não sente frio, sede, ou fome, e pode flutuar nas alturas, junto a
nuvens de algodão. Ele já contou para todo mundo lá sobre você,
que você cuidava dele, que foi o eremita mais amado neste mundo.
Ele está radiante pela sorte de ter sido escolhido por você.
Ela
corre para o viveirinho, apanha o “filhinho” que está vivo e o
nina na concha da mão chorando que agora o bebê não tem mais uma
mamãe. O eremita espia com seus olhos rombóides de dentro da
concha, tentando desvencilhar-se encolhendo as pinças e balouçando
curioso as antenas. Ela recolhe a recém desenhada figura da “família”
que havia colado no viveiro como presente aos crustáceos.
-
Docinho, vamos fazer um funeral para ele, vamos colocar seu desenho
porque o Hermie quer mostrar para todo mundo lá no céu.
Compomos
a última morada do decápode em uma caixinha de acrílico
transparente, perfeita para a ocasião solene, o leito é feito de rosas
secas colhidas do jardim durante a primavera passada, cuidadosamente
deitamos o eremita em sua concha-mortalha, sua última tanatocrese. Repousa sobre uma toalha de papel
branca, no sofá, enquanto a pequenina chora copiosamente aninhada em
meus braços. “Parece o caixão da Branca de Neve” - digo
tentando desviar-lhe o pensamento.
O
frio é impiedoso lá fora – vai ser impossível cavar-lhe uma cova
– penso fitando da grande vidraça a neve ultra macia devido ao
frio causticante.
Ela
pede para segurar o defunto, alisa-lhe o exoesqueleto carinhosamente.
Quer beijar o bixinho. Digo-lhe que não, que o corpo pode ter
bactérias, germes, estafilococos. Sugiro que sopre beijinhos. Ela
interrompe o choro e curiosa principia a lhe puxar o corpo. O pléon
não oferece resistência alguma e estupefatas adimiramos a
fragilidade da pequena cauda que o mantinha confinado. Depois de
solto da concha o animal se desintegra, gradativamente, as perninhas
caindo no papel branco com que por si. A primeira autópsia se
conclui.
-
Mamãe vamos cozê-lo?
Minha
vontade é cair em gargalhadas. Sou obrigada a desviar o rosto e a
abraço forte.
-
Não filhinha, não podemos comer seu animalzinho.
O
enterro é breve, ela mesmo cava a neve macia com as mãos, faz uma
cova de gelo. O Hermie repousa no jardim aguardando a primavera, até
que o solo volte a sua maciez para a cova permanente.
Dentro
de mim ainda ecoa a pergunta da pequena “vamos cozê-lo?”. Era
um propósito. Minha pequena procurava um propósito para a estúpida
partida.